Temos o prazer de compartilhar hoje a entrevista com o Psicólogo do CDH-Centro dos Direitos Humanos Maria da Graça Bráz, e do CAPS AD de Joinville – Centro de Atenção Psicossocial
Nasser Haidar Barbosa
Nasser, para iniciar a entrevista poderia nos
contar um pouco como é seu cotidiano fora do trabalho. Um pouco sobre
seus hobbies, atividades e interesses paralelos?
Então, eu sou um cara de hábitos
simples. Primeiro eu dedico grande parte do meu tempo ao meu filho, corrigir
suas tarefas da escola, cozinhar para ele e para minha esposa, brincar com ele,
enfim, toda a atenção que cabe. Durante a faculdade e também um pouco depois
disso passei muito tempo ausente, apesar de sempre ter aproveitado quando
estávamos juntos. Portanto, hoje se tem algo que me faz feliz é estar com ele.
Além disso, gosto muito de assistir qualquer esporte na TV e ao vivo. Assim,
sempre que posso ou a agenda permite vou ao estádio ver o JEC, ao ginásio ver o
basquete, etc. Também passo horas assistindo corridas de carros (minhas
prediletas). Atualmente estou viciado em The Walking Dead (uma série fenomenal
sobre pessoas tentando manter relações sociais conforme os padrões de
civilização que conhecemos em um mundo pós apocalíptico zumbi). Também jogo
muito Star Craft II no computador, mas este somente nos sábados de madrugada,
on-line com pessoas do mundo inteiro. Gosto muito porque treino meu inglês.
Acho que também vale citar que estou revisitando obras da literatura que
marcaram minha vida. Hoje, por exemplo, estou relendo 20 mil léguas submarinas.
Mas confesso que ando muito desleixado com a leitura.
Para iniciar
agora, nos fale um pouco sobre o seu percurso de formação profissional,
experiências, e das suas atividades como profissional atualmente?
Eu me
formei em dezembro de 2006. Costumo dizer que minha carreira começou já em
abril daquele ano, porque foi quando sai da empresa onde trabalhava para me
dedicar mais aos estágios da faculdade. Inclusive isso possibilitou fazer um
estágio extracurricular no Centro dos Direitos Humanos Maria da Graça Bráz
(CDH), instituição onde ainda trabalho e que certamente me trás as mais ricas
experiências profissionais. Em abril de 2007 fui contratado no CDH para dar
continuidade a um projeto com adolescentes de regiões periféricas de Joinville
e Araquari. Este projeto se encerrou no final daquele ano. Em 2008, assumi a
coordenação de outro projeto no CDH substituindo minha amiga Gisele Schwede.
Este projeto hoje é intitulado Programa de Acolhimento Social (PAS) e nele
desenvolvemos ações interdisciplinares (direto e psicologia) no formato balcão
de direitos humanos. Ainda em 2008 fui contratado na Penitenciária Industrial
de Joinville onde eu havia feito estágio de psicologia do trabalho. Lá
desempenhava a função de psicólogo no sistema prisional. Uma experiência
riquíssima que certamente mudou minha visão de mundo e influenciou
profundamente minhas escolhas profissionais e pessoais que se seguiram.
Ainda em 2008
eu saí da penitenciária porque fui chamado para a Prefeitura de Joinville em
decorrência de concurso público que prestei em 2007. Como o salário e as
condições de trabalho se mostravam melhores, aceitei o novo desafio e iniciei
assim minha trajetória no SUS. Em primeiro momento passei a compor a equipe de
saúde mental de uma regional de saúde atendendo a demanda de 2 unidades básicas
de saúde e 5 unidades de saúde da família Uma população de 63 mil pessoas.
Loucura total, mas um cotidiano fascinante! Aprendi muito sobre o verdadeiro
trabalho interdisciplinar neste período. Desenvolvemos diversas ações
comunitárias, buscamos ampliar o entendimento da população sobre os aspectos
políticos, sociais, culturais, etc. da doença e da saúde mental, entre tantas
outras coisas que acabaram culminando com o reconhecimento de meu trabalho e o
convite para ser coordenador do CAPS AD de Joinville. Assim, em 2011 deixei a
Atenção Básica do SUS e comecei minhas atividades a frente do CAPS AD onde
permaneço até hoje. O CAPS é um local de maior tensão política, portanto,
sinceramente não me sinto bem destacando aquilo que conquistamos com minha
atuação aqui. Acho que isso demanda uma avaliação de minha equipe, dos gestores
e principalmente dos usuários do nosso serviço, seus familiares, enfim, a
comunidade em geral. Cabe apenas destacar que quando cheguei, não tínhamos um
CAPS AD, um serviço de portas abertas, acolhedor... haviam apenas uns 40
usuários em tratamento. Hoje, ninguém pode negar que acolhemos muito bem, que
estamos de portas abertas, que lutamos pelos direitos dos usuários, inclusive o
de poder acessar tratamento mesmo sem querer deixar de usar drogas, mas
principalmente, temos os dados epidemiológicos indicando que estamos no caminho
certo, porque hoje temos mais de 300 pessoas ativas em tratamento no CAPS AD.
Por fim, não
menos importante, cheguei a lecionar psicologia social por um semestre na ACE
em 2010 e iniciando em 2010 e continuando até hoje, leciono duas disciplinas de
psicologia no curso de nutrição do IELUSC. Na época, sai da ACE porque eu não
tinha qualquer formação complementar. Hoje tenho especialização em Saúde Mental
e Dependência Química, uma pós lato sensu. Sinto muito desejo de fazer o
mestrado, mas com essa agenda profissional a carreira acadêmica sempre ficou em
segundo plano.
No seu
entendimento, qual a importância da discussão dos Direitos Humanos
para a
formação dos acadêmicos em Psicologia?
Como o
próprio código de ética da psicologia aponta, Direitos Humanos são princípios
fundamentais de nossa ciência e prática profissional. Lembro-me de um texto da
Silvia Lane que já nos alertava: toda psicologia é social, porque a toda
psicologia cabe entender que os seres humanos não são um fim em si mesmos, que
toda manifestação humana é datada, portanto histórica e é manifesta, portanto
social. Essa ideia implica necessariamente em despir o ensino da psicologia de
uma pretensa neutralidade científica e colocá-lo no campo dos conflitos de
poder. Somente assim a psicologia se tornará aquilo que realmente deve ser, um
instrumento de transformação social para o bem. Contra as desigualdades, contra
as injustiças, contra toda ordem de sofrimento e violações. Isso meu caro, é
entender psicologia sob a ótica dos direitos humanos e te digo que se não for
assim, então de nada serve a psicologia.
Nasser, você
trabalha no Centro de Direitos Humanos de Joinville, poderia falar um pouco das
funções, das demandas e da organização desse serviço?
O CDH é
uma organização não governamental, de utilidade pública, sem fins lucrativos.
Nosso trabalho está voltado para atender a população em geral vítima de
violação dos direitos humanos. E como tem...
Hoje coordeno
duas ação do CDH, o PAS que citei acima, a partir do qual atendemos a população
que busca o CDH com as mais variadas demandas, porém principalmente com
questões relativas ao direito a moradia, violência institucional (aqui incluo
no sistema prisional e contra a mulher – que considero violência de caráter
institucional na medida em que o Estado é inerte e por omissão contribui para a
manutenção deste problema) e orientações em conflitos em geral (familiares,
entre vizinhos, entre comunidades, etc.). Outra ação importante do PAS é a
aglutinação de organização das causas coletivas, portanto é a partir dele que
desenvolvemos outras organizações e grupos focados em direitos específicos. Por
exemplo, fundamos a Associação Arco-Íris pelos direitos da população LGBT,
também formamos o comitê de luta pelo transporte público de qualidade, entre
outros.
O segundo
projeto que coordeno é a Escola de Formação Popular em Direitos Humanos (EDH).
Este eu espero que se torne brevemente meu objeto de estudo no mestrado. Na EDH
atuamos com vistas a atingir de forma mais satisfatória um dos principais
objetivos do CDH que é a formação, comunicação e educação da sociedade fundamentada
em uma cultura da paz e dos direitos humanos. Neste projeto desenvolvemos
diversas metodologias dentro da lógica de educação popular e informal, bebendo
em Paulo Freire especialmente. Assim, são cursos, palestras, oficinas,
seminários, etc. que desenvolvemos de forma centralizada, no CDH e também
territorial, nas comunidades. O trabalho comunitário se dá justamente acolhendo
com as lideranças populares as principais demandas de cada região e construindo
com eles as formas de se promover maior acesso a informação sobre direitos
nestas áreas e sobre como promover efetivas transformações sociais. Vai por
mim, esse trabalho ainda vai dar muito que falar. É minha “menina dos olhos”.
Acho que
também é importante dizer que a partir de minha atuação no CDH tive contato com
o Conselho Carcerário de Joinville e que desde 2010 sou presidente deste
conselho, atuando diretamente nas políticas relativas a segurança pública.
Qual a sua
percepção sobre o papel das organizações que defendem os Direitos Humanos no
atual andamento da Reforma Psiquiátrica? Em que aspectos ainda são necessárias
melhorias?
Questão
complicada esta. Na verdade são duas as respostas. Primeiro, as instituições de
defesa dos direitos humanos acabam atuando de forma muito ampla e com isso
correm o risco de não atentar para as especificidades de cada demanda. Eu
percebo isso com a questão da reforma psiquiátrica, no que muitas entidades de
direitos humanos não conseguem atuar por falta de conhecimento. Por outro lado,
quando a entidade tem compreensão deste tema ela passa a ser de primordial
importância na defesa de um processo contínuo de evolução da reforma
psiquiátrica. Exemplo disso é a o levante contra a onde de internações
compulsórias que está assolando o país inteiro (e aqui já inicio a resposta a
segunda questão). A reforma psiquiátrica no Brasil carece de muitas melhorias,
especialmente se analisada pela ótica dos direitos humanos. Afinal, sendo
assim, não podemos aceitar meios direitos. Os direitos humanos são
indivisíveis, ou seja, sem um todos os outros estão violados. Portanto, mesmo
com todos os avanços das redes de atenção psicossocial, não podemos esquecer
que muitas pessoas ainda estão asiladas em hospitais psiquiátricos. Não podemos
esquecer que muitas pessoas ainda não sabem como buscar auxílio ou não
conseguem acessar os serviços insuficientes quantitativamente, etc. Porém,
certamente a maior frente de trabalho dos/as defensores/as de direitos humanos
concernente a reforma psiquiátrica é a luta contra o retrocesso que representa
as atuais movimentações na área de álcool e outras drogas. Por exemplo, a
inclusão de Comunidades Terapêuticas na rede de atenção psicossocial. Além de
na prática representar a terceirização da saúde pública, estamos falando de uma
abertura perigosa para instituições de cunho religioso, pouco ou nada técnicas
e profissionais e extremamente punitivas e moralistas em suas práticas...
Na sua
experiência como psicólogo no sistema prisional, você pode afirmar que existe
um trabalho interdisciplinar, por exemplo, com o campo do direito? Como é essa
relação?
O
trabalho existe sim, porém é isolado. Alguns profissionais conseguem atuar
desta forma, talvez porque apenas alguns profissionais sejam inteligentes o
suficiente para perceber que assim o trabalho tem muito mais resultado. Na
prática, esta atuação interdisciplinar buscar humanizar a referência e contra
referência entre a pessoa e sua demanda. Assim, se for algo de cunho jurídico
como pedido de informações sobre um mandado de prisão, do momento em que a
pessoa pergunta ao advogado até o momento em que ela recebe o parecer jurídico,
cabem intervenções da psicologia para minimizar o sofrimento e mediar os
processos de comunicação, não apenas entre cliente e advogado, mas também entre
a pessoa e o texto de sua sentença, portanto, entre a pessoa e seu devir. Bem,
isso daria uma entrevista inteira para explicar, mas em resumo se trata desta
relação de mediação semiótica.
Como
psicólogo envolvido na luta pelos Direitos Humanos, como você observa os
fatos ocorridos no dia 18 de janeiro no
Presídio Regional de Joinville?
Total
inexistência do Estado no contexto do cárcere. Onde o Estado não se faz
presente, o caos se manifesta. Mas além disso, podemos observar questões mais
fundamentais, como a cultura do encarceramento em massa, a política punitiva e
repressiva e a reprodução social de um sentimento que divide a sociedade... o
velho conhecido dualismo. É isso que faz com que agentes prisionais se sintam
no direito de torturar. É isso também que contribui para que algumas pessoas
não considerem a tortura no sistema prisional um problema.
Na conjuntura política Brasileira, observamos recentemente a
eleição para a presidência da Comissão
de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados, o pastor Marco Feliciano. Ele está agora sofrendo
pressão popular para deixar o cargo, pois, segundo grupos defensores de
direitos homossexuais e negros o deputado teria feito várias
declarações de cunho homofóbico e racista. Como você analisa o impacto dessa
alteração para os Direitos Humanos e sociedade de forma geral?
Vamos combinar, no mínimo estúpida
a nomeação de um pastor para a Comissão de Direitos Humanos. Sinceramente, eu
carrego uma tatuagem com a f=Foice e o Martelo entre rosas no meu antebraço
esquerdo para representar todo o meu repúdio à forma como vivemos, como nos
organizamos em sociedade. Digo isso para não restar dúvidas do que penso sobre
o assunto. Para mim, há muito tempo Brasília não representa a defesa dos
direitos humanos. Na verdade eles não representam as necessidades da população.
E viva a Revolução!!!!!
Finalmente Nasser, aos acadêmicos que tem interesse
em trabalhar com Direitos Humanos, sistema prisional ou com psicologia Social
de forma geral, algum conselho?
De forma prática, busquem se
associar a pessoas e grupos que já atuam na área. Em direitos humanos não
precisamos inventar nada. Temos tudo aí, necessitando de conquistas. Além
disso, tomem cuidado, porque apaixona, vicia e fascina. Segundo, se planejem, o
trabalho na área social é dos mais desgastantes devido a carência de pessoas atuando
de forma séria na área. Além de nem sempre gerar bons rendimentos econômicos.
Ou seja, demanda se dividir e também atuar em outras coisas. Vide meu
currículo. Mas principalmente, sejam bem vindos! Eu acredito com absoluta
convicção que se trata da mais rica experiência possível em qualquer ciência e
profissão, o trabalho no campo dos direitos humanos.
Em nome de todos os acadêmicos e em especial do CAP M. Foucault nosso muito obrigado pela valiosa contribuição Nasser!
Por: Gean Carlos Ramos
Muito bom Nasser, sem direitos Humanos não existe Psicologia! Esse é um tema essencial para nós estudantes de Psicologia, e na verdade para todo mundo também. Parabéns pelos trabalhos desenvolvidos com as comunidades e com o EDH, essa é outra luta importante em que a psicologia ainda tem muito a contribuir!!
ResponderExcluirEntrevista deliciosa de ler. De fato, a vinculação de Psicologia com Direitos Humanos é inevitável, por isso é tão complicado ouvir posicionamentos moralistas, fundamentalistas e reacionários de estudantes e profissionais da área, o que ainda ocorre. Nasser, parabéns pela sua trajetória e pelo seu trabalho, e você está certíssimo: a revolução, é o caminho.... ]
ResponderExcluirRosina.