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quinta-feira, 5 de maio de 2011

Resenha de documentário por Suellen Costa

ESTAMIRA:
O nome, quando reconhecido, faz a vida resistir!

Estamira é uma mulher de 63 anos que sofre de distúrbios mentais e que, a mais de 20 anos, trabalha no aterro Sanitário de Jardim Gramacho, no Rio de janeiro.
É uma mulher simples e de vida difícil que encontra no lixão a possibilidade de sobrevivência. Em seu depoimento, nos dá a impressão de que não viveria sem aquela realidade no lixão. É uma mulher tachada como “louca” pela família e médicos, mas que nos apresenta com uma lucidez incrível nas suas idéias e seus pontos de vista. Renega a Deus por diversas razões e se mostra capaz de explicar todos os fenômenos naturais e humanos de forma lúcida, eloqüente e ao mesmo tempo questionadora. Torna-se uma prova da capacidade que as pessoas têm de pensar e agir de forma contrária a padrões e, ainda assim, se manterem intelectualmente ativas.
Mostra ser uma pessoa que sofreu muito e por isso abriu mão de uma “vida social bem vista” para se dedicar a analisar o ser humano e suas atitudes, e a questionar a real existência de um Deus. E foi no lixão, em meio a outros catadores, que passou a encontrar respostas para muitas das suas indagações e críticas.
Diz ter uma missão: “Além de eu ser Estamira, minha missão é revelar a verdade”. Afirma com muita convicção que não existem inocentes, que o que existem são espertos ao contrário. Nos deixa a impressão de que fala a respeito daqueles que se dizem inocentes apenas para se sentirem numa posição mais confortável e favorável. Diz ser ela mesma a “visão de cada um”. “Ninguém pode viver sem mim. Ninguém pode viver sem Estamira”. Coloca-se no foco e quer levar as pessoas a entender as coisas da mesma forma que ela entende, de forma crítica e analítica, colocando o ser como único responsável pelo próprio ser. “A criação toda é abstrata. O espaço inteiro é abstrato. A água é abstrata. O fogo é abstrato. Tudo é abstrato. Estamira também é abstrata”. Faz uma comparação entre o ser de carne, sangue e nervos e a eletricidade, com os fios que conduzem a energia, nos querendo dizer que, da mesma maneira que o homem domina a eletricidade e a energia, quer dominar também o próprio homem. Afirma que “quem tem deficiência mental é imprestável. Perturbação não é deficiência, perturbação é perturbação”.
Em suas indagações, seus períodos de “delírio”, diz muitas coisas que nós, considerados mentalmente sãos, não temos coragem de dizer ou questionar. Mostra que apesar do desequilíbrio em que vive, tem uma visão da realidade cotidiana da sociedade. Quando cita o lixo como resultado do resto e do descuido, traz a realidade de uma sociedade que vive do exagero, do consumismo e da negligência. Faz distinções importantes entre trabalho e sacrifício, entre o ser ruim e o ser perverso, entre ser doente mentalmente e a perturbação, entre o homem ímpar e a mulher par, entre os espertos e os espertos ao contrário, entre o além e o ”além dos aléns”.
Expõe sua indignação dizendo que a culpa é do “hipócrita, mentiroso, esperto ao contrário, que joga a pedra e esconde a mão”. Diz ser perfeita: “Eu sou perfeita. Meus filhos são comuns”. Se mostra revoltada em haver tanto sofrimento e luta pela conquista do alimento: “Foi combinado alimentar o corpo com o suor do próprio rosto, não com sacrifício. Sacrifício é uma coisa, trabalhar é outra coisa. Trabalhar sim, não sacrificar”. “Discorda dos diagnósticos médicos dizendo que são “meros copiadores”: “Vocês não aprendem na escola, vocês copiam. “Vocês aprendem é com as ocorrências”. Fala também a respeito da falta de segurança enfrentada no dia-a-dia. “Onde já se viu uma coisa dessas? A pessoa não pode andar nem na rua que mora, nem trabalhar dentro de casa e nem em trabalho nenhum, em lugar nenhum”.
Seu outro alvo é Deus. É extremamente fascinante sua reação quando é questionada sobre Ele. “Que Deus é esse, que Jesus é esse que só fala em guerra? Quem já teve medo de dizer a verdade largou de morrer? Quem anda com Deus, noite e dia, largou de morrer? Quem fez o que ele mandou, largou de morrer? Largou de passar fome? Largou de miséria?” Na sua concepção, quem fez Deus foram os homens.
Tem sua indignação marcada pelas experiências vividas desde a infância difícil, adolescência marcada pelo abuso sexual e prostituição, forçada pelo próprio avô, primeiro casamento mal sucedido por traições e problemas com alcoolismo, um segundo casamento também destruído pela traição e falta de consideração respeito e ainda, abuso sexual na rua onde mora. São relatos de uma vida sofrida, marcada e frustrada, por acreditar no ser que se diz humano e que acaba levando o próprio ser humano à decadência e desgraça total. E agora tem sua oportunidade de expor as coisas com uma visão de “quem vê de dentro”.  Acaba por ver o “ser humano como único condicional”, talvez como único responsável por tudo que acontece, seja bom ou ruim, e único capaz de mudar a direção com que as coisas acontecem. Como cita Estamira "conservar as coisas é proteger".
 
ESTAMIRA. Direção: Marcos Prado. Produção: Marcos Prado e José Padilha. Brasil: Riofilme, 2006. 1 DVD.

 Suellen é aluna do nono semestre de Psicologia.

6 comentários:

  1. Texto bem escrito. Fiquei com vontade de assistir!

    Nos faz perceber que o sábio não necessariamente é o possuidor de títulos.

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  2. Este filme é muito bom e a resenha está muito bem produzida, lúcida.

    Recomendo o filme a todos e Parabéns Suellen.

    Sina.

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  3. Assisti o filme e recomendo e parabenizo a Suellen por expressar de forma clara e precisa o drama vivido por Estamira.

    Marnice

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  4. Vale a pena assistir o documentário. Muito bom e nos traz uma visão de mundo muito enriquecedora.

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  5. Parabéns pela verdade e clareza em cada palavra,Suellen. Estamira sem dúvida é um dos melhores documentários que já assisti, pois nos evoca a uma série de questões sociais e místicas que muitas vezes passam despercebidas.

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  6. Em memória de Estamira

    Filha do lixão
    dos restos e descuidos
    da miséria e da angústia
    nada senti senão verdades e questionamentos
    vivi até que me perdi em meio a loucuras
    Loucuras para alguns não para mim
    Para mim verdade absoluta, legítima.
    Psicótica...
    lunática...
    sábia...
    força maligna...
    Por Deus perdi a crença
    e sem maiores desavenças digo o que quero.
    Salvadora do único condicional
    E ávida pela destruição do Trocadilho
    O trocadinho nos enganou
    O trocadilho, o incompetente, o insignificante, o esperto ao contrário.
    Não confundíeis:
    Trabalho e sacrifício,
    Resto e descuido
    Ruim e perversidade
    Além e além dos "aléns"

    Você precisa de mim
    Você é comum e eu sou perfeita
    Meu nome?
    Estamira.

    Marcelo A.

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